quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Dia desses...

Dia desses atrás lá de casa tinha até murici.
Tinha também maracujá do mato. Com seu alinhado de cipós
servindo de morada para cobras verdes e calangos. Tinha mangas
de todos os tamanhos. Algumas pensando poucas gramas e outras com 
dois e três quilos de puro suco.
Dia desses tinha puçá, acerola, azeitona, sapoti e até caju. 
Um bicho pra lá de rançoso por conta de tomar sol demais nos
mais altos galhos da árvore.

Dia desses tinha tanto terreno baldio no bairro que a galera selecionava
cada um para ser usado com uma atividade diferente. Enquanto uns jogavam
bola, outros tentavam empinar suas pipas em um tremendo céu com cara 
de “vai chover”. Tudo isso sem se importar com hora para comer e muito
menos para fazer alguma obrigação dentro de casa.

Dia desses tinha socó, marreco, preá, cassaco... Soins brincando 
de pega-pega sem se esbarrar nos fios de alta tensão.

Dia desses choveu. Choveu que atolou a caminhoneta do Narcélio. 
Pra tirá-la, foi preciso amarrar cordas e puxar com tanta força que 
no seu lugar ficou uma poça de lama funda o suficiente para cobrir
o mais atrevido dos moleques. E choveu tanto que abriram diversos
 olhos d’águas por toda a rua. Misteriosos e infinitos olhos d’águas. 
E todo mundo naquela noite disse a sua versão mágica que tentasse
ao menos explicar aquela tamanha proeza que “saia do nada” para 
correr pelo meio do mundo.

Dia desses todo mundo se assombrava de verdade. Havia uma 
encruzilhada sinistra. Dava arrepio no povo antes mesmo de chegar perto e, 
por incrível que pareça, ninguém nunca chegou a ver nada. Nem lobisomem, 
nem boi tatá, nem cavalo do cão e nem cavaleiro sem cabeça. Oura. 
Apenas os ruídos, os ventos nos galhos e as risadas inexplicáveis já eram
suficientes para que a imaginação tomasse conta do resto.

Dia desses passou um filme que devo ter visto pela última vez quando 
tinha a tosca mania de misturar farinha com açúcar e comer. História sem fim. 
Sei bem porque ao rever de novo tudo que vinha à minha mente era o gosto 
desses dois ingredientes na boca.

Dia desses comi broa de saco. Bruaca com manteiga da terra. Batata doce.
Filhós. Fubá. Carne de lata assada. Posta de cará. Pão com couro de galinha. 
Dindin de tamarindo. Tapioca com café. Cuscuz com ovo caipira. Panqueca de
banana e bolo de cenoura quentinho, quentinho. Dia desses comi moela cozida 
com arroz branco. E acho que até hoje comemos tudo isso para nunca se
desligar totalmente de uma infância repleta de experiências culinárias que 
ficam para sempre impregnadas na memória.

Dia desses passava um homem montado em um jumento gritando na porta da
minha casa. Ele tinha um chapéu de cangaceiro, sempre estava com a roupa 
suja de sangue pisado, tinha um facão na cintura e muitas moscas ao seu redor.

— Figooooooooooooooooooordo e panelada...

Aí, várias senhoras, incluindo meu pai, encostavam com uma bacia para que ele
despejasse pedaços de carne e gorduras coloridas para mais tarde virar janta.

Dia desses tive a plena noção que não mais existem peixes no bairro. 
Alguns foram soterrados pela serpente maldita chamada asfalto, outros 
migraram Deus sabe pra onde. Aruás, libélulas, joaninhas, mariposas e gafanhotos... 
Até barata d’água. Dia desses tinha tudo isso...

E dia desses, minha mãe precisou de um misero coco para temperar um caldo
de peixe que estava sendo cozido desde manhã cedo. Antigamente era só passar por debaixo da cerca e pegar o maior que tivesse caído bem no fundo do quintal.
Agora não havia nenhum para remédio. Nem no mercantil do Seu Nunes. 
Nem na Dona Dinha.
Pois é.
Dia desses tudo isso existia aos milhões. Espalhados pelos muitos terrenos
baldios de um Parque Manibura ainda desconhecido do progresso e da era tecnológica.

Dia desses...

Nota do Autor: Em 2014, após 36 anos morando no Parque Manibura, 
me mudei para o Barroso (um bairro mais ao sul da capital)


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