quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Minha memória fotográfica - Parte 1

Eu tinha uma tia que morava no outro quarteirão. Mesma rua. 
Mais um pouco distante, sentido Messejana – Iguatemi. 
O Shopping já existia, lógico. 
Estou falando de 1993, mais ou menos...

Nessa época, era costume a solidária confraternização entre os vizinhos. 
Humildade gerada pelo espírito sertanejo acolhedor.
Então, vez e outra, um menino de recado que nem sonhava em ser 
cartunista costumava aparecer nas portas alheias pedindo alguma 
coisa de última hora. Na minha família, esse papel oficialmente foi 
meu durante toda a infância. 
Uma cabeça de alho, dois dedos de óleo, uma xícara de farinha de trigo 
ou colorau. Várias vezes, tão logo minha mãe passava o veredicto,
eu amarrava uma fralda no pescoço (do meu irmão mais novo) e literalmente 
saia voando como Christofer Reeve e sua eterna adaptação para o Superman.
Era massa.
Completamente cheio de mato, o fundo do quintal da minha casa 
se tornava um verdadeiro ninho de coisas e surpresas
Por três quartos de um quarteirão, entre galhos retorcidos de cajueiros
e emaranhados de ramos de cabaças, eu ainda fui Tarzan, Chefe dos 
Caça–Fantasmas, Indiana Jones, Inimigo Meu, Rambo e Simbad. 
Um navegador com bem mais respaldo e escrúpulo do que Jack Sparrow
e que eletrizava minhas Sessões da Tarde ao lado de todas essas aventuras.

 Mais tarde, quando esse mesmo irmão cresceu um pouco mais, fizemos
tantas presepadas juntos que, até hoje, com um pinguinho a mais de juízo, 
desacredito que fui capaz de cometê-las. 
Como na vez em que fizemos uma cabana de palha seca de coqueiro,
tocamos fogo e, ao invés de correr das labaredas, continuamos debaixo
delas, dando gargalhadas até o último minuto de desabamento.
Ou das diversas vezes em que subimos no olho do pé de azeitona
para ficar chutando um ao outro até que o perdedor se estabacasse no chão. 
Como Deus protege mesmo as crianças e os doidos desse mundo, 
jamais nenhum de nós caiu. Não me pergunte por quê.

Mas nem só de arte vivíamos naquele mundão. Quando fecho os olhos,
é incrível como relembro primeiramente do quanto aquilo era muito grande. 
Saia de casa com a cabeça baixa catando murici e, quando dava fé, 
já estava a quilômetros de distância da cozinha da minha mãe. 
Às vezes explorando cavernas imaginárias, pesquisando crateras marcianas 
ou medindo pegadas de dinossauros. Puta imaginação de quem tinha
à sua disposição um gigantesco brinquedo científico nas mãos. 
Ou debaixo dos pés.

Mais alguns territórios eram realmente perigosos. Ah, se eram.

Naquela área onde atualmente se encontra o Shopping Via Sul tinha
um pé de jenipapo enorme, propriedade de uma cobra de veado de num
sei quantos mil metros. Meu tio havia visto. Meu primo havia visto. 
Num sei quem escapou fedendo e a lenda em torno daquela aberração 
da natureza espantava quem tinha amor a sua vida. Literalmente...

Quantas vezes não atravessei a fininha Washington Soares para seguir
pela atual Brasil Soares até chegar no Bar do Zé do Mangue?
 Nem tinha nome ainda aquela rua. Ops! Avenida.
 E tudo só para chegar na beira da lama gelada e escavacar o maior
dos caranguejos. Alegre e satisfeito. Eufórico e realizado. 

E quantas vezes não comi maria maluca, filhós de açúcar, tijolinho de leite, 
pastelzinho de saco e guaraná Brahma, quando aquele granfino
restaurante da nova elite fortalezense ainda era um boteco de janelinha?
Quantas vezes comemorei ao ver meu primo Cláudio acertar de espingarda
as galinhas d’água que se banhavam no lago onde agora funciona a Tok & Stok?
Rir vendo minha mãe praguejar com as teimosas castanhas que pulavam 
da assadeira como se quisessem dizer: “Eu, hein. Tô fora!”.

Jogar pedras na manga madura junto com 10, 15 meninos onde 
o desespero de quem iria ficar com a bendita só deixava a situação 
mais tensa e canalha? Torrar peixe mussum ou cará pescado por eu mesmo 
e comer com farinha? Pegar libélula pelo rabo? Na verdade um agoniado
 teste de reflexo e coordenação motora? Sair pra catar caju de manhã
e só voltar no final da tarde? E ainda mais com muitas outras frutas 
na bagagem. Da ata gigantesca ao desgraçado tamarindo. Além de um 
cacho de alopradas seriguelas. Enxadas e brilhantes de tão vermelhas,
cujo endereço já era mais do que certo. O colo da minha avó.

E até quando os maribondos atacavam a gente, ao invadirmos seu 
território atrás de pau pra fazer galinheiro, havia uma satisfação por trás d
e tantos calombos. 

Ter tido contato com a natureza nos meus primeiros anos de vida
continua satisfazendo o meu ego. Não só porque sou ser humano 
e envelheço. Mas também porque foi mesmo a época da magia.
Das identificações e referências ecológicas. Do desbravamento movido
pela curiosidade. Cicatrizes que até hoje me dão orgulho. 

Talvez por isso quando ganho qualquer oportunidade na agenda, 
dois minutinhos em meio a um ano de conturbações desenfreadas, 
contrastes, compromissos e progressos, vou e solto os meus filhos 
nas dunas do Iguape. Tudo para que futuramente eles também sejam 
conscientes e amorosos como consegui ser. Conscientes de que cada 
minuto de aventura saudável é pra ser aproveitado com o máxima de 
satisfação possível. E amoroso porque são nas coisas simples da vida
que estão as nossas maiores lembranças. 
Para sempre.

Nota do autor: Essa crônica foi escrita em 2012.

1 comentário:

  1. Foda demais a narrativa, o talento é não só na mão que desenha mas também na escrita, parabéns, completamente inspirador, tambem faço isso com minha filha e vou continuar aproveitando os raros momentos de vida real.

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